Robertsbridge circular

outubro 28, 2019 Helô Righetto 3 Comentários


Dessa vez a viagem de trem para o ponto inicial da trilha levou cerca de uma hora e meia, o que é bastante comparando com a média de 45, 50 minutos. É um tempo que me faz pensar que eu poderia muito bem estar na cama, mas estou sentada olhando a paisagem passar rápido, tão rápido que nem consigo ler o nome da estações por onde o trem passa sem parar. De qualquer forma, é tarde demais para qualquer arrependimento - se for para desistir, que seja no segundo que toca o despertador (o que já aconteceu, mais de uma vez).

Já havia passado mais de um mês desde a última trilha, então eu estava feliz de finalmente calçar as botas, encher a mochila de água e comida e caminhar os quilômetros que fossem para chegar no ponto final. Nesse caso, o ponto final era o mesmo do inicial, as maravilhas de uma trilha circular.

Ainda que a vontade de ir pro mato estivesse a flor da pele, a preguiça influenciou o percurso: em vez de ir para Wendover a partir da estação de Marylebone, achei a trilha Roberstbridge circular um dia antes, que nos permitiria pegar o trem em London Bridge. Muito mais fácil, garantindo pelo menos 30 minutos extras na cama.

Nossas caminhadas pelo interior da Inglaterra são repletas de rituais, adquiridos ao longo desses três anos desde que começamos a fazer hiking com frequência. O ritual da manhã inclui chegar na estação cerca de uma hora antes do trem partir. A primeira coisa é providenciar as passagens de trem. A segunda coisa é comprar comida para o dia (em London Bridge, isso é feito no M&S). Coisa fácil de carregar: wraps, saladas prontas, frutas, algum doce. E depois, finalmente, tomar o café da manhã. O café da manhã pré hiking é um ritual dentro do ritual: vamos no Leon (não no que fica dentro da estação, que tem um atendimento péssimo, mas o que está do outro lado da rua, sempre vazio e muito maior), comemos nossos sanduíches de avocado com queijo haloumi e tomamos nossos skinny lattes. Faltando 15 minutos pra saída do trem, começamos a ir devagar para a plataforma.

Invariavelmente outros hikers embarcam no mesmo trem. Alguns saltam antes, a gente fica curioso pra saber que trilha eles vão fazer. Quando saltam com a gente, nos perguntamos se os encontraremos ao longo da nossa trilha ou talvez no trem de volta. Isso é coisa rara. Dessa vez, porém, uma moça que carregava uma edição do livro Country Walks saltou na mesma estação - Robertsbridge - mas logo acelerou. Curiosamente, encontramos com ela lá pela metade da trilha, mas  ela acelerou de novo. Não a vimos no trem de volta - deve ter conseguido embarcar no trem anterior.

Estávamos um pouco enferrujados por causa do "mais de mês sem hiking". Martin sincronizou seu relógio Suunto, abriu o mapa no celular. Eu abri as instruções no meu. E seguimos. Há alguns meses o hiking passou a ser coisa nossa, em vez de algo que fazemos com os amigos. Paramos de chamar outras pessoas para nos acompanharem, e acabamos arrumando desculpas quando somos chamados para acompanhar grupos grandes. Acho que família de dois, sem filhos, é meio assim - pelo menos nós dois somos - anti social. Quando a gente se toca que alguma coisa "'é nossa", a gente cria uma bolha em volta dessa coisa. Era assim com a corrida.

Apesar do dia de sol, o caminho estava enlameado, por causa da chuva constante nos dias anteriores. Eu não me importo com a lama. Gosto de afundar a bota nela pra provar pra mim mesma que ela valeu o investimento. Que a minha bota é boa, impermeável. Quando mais suja, melhor. O problema da lama é que ela vai acumulando e secando na sola e nas laterais, deixando a passada mais pesada, cansando a perna com mais intensidade.

Encontramos pouca gente pelo caminho, o que é atípico. Mais tarde, depois do almoço, quando passamos pelo Bodiam Castle, entendemos que todo mundo estava lá. Até o estacionamento estava lotado. Mas logo o castelo e a multidão ficou pra trás e seguimos sozinhos pelas folhas, pela lama, pelo campo.

Pela primeira vez, passamos por um milharal ainda por ser colhido. Não sabia que a planta do milho era alta desse jeito - da altura do Martin. Também passamos por uma plantação imensa de maçãs - quase todas já colhidas, muitas outras no chão, apodrecendo lindamente, um cheiro maravilhoso que me lembrou cidra. Não pegamos nenhuma maçã - mas pegamos dois milhos. Desculpa, agricultores. Somos seres humanos falhos mesmo. Se serve de argumento, eu nunca havia colhido um milho (não cozinhamos ainda, não sei se estava "no ponto"). As vezes eu brinco com o meu pai: ele saiu do meio do mato, de uma infância com vaca de estimação. E eu fico buscando essa vida rural nas trilhas. Me encanto com as ovelhas, com as plantações.

O trem de volta era de hora em hora, e chegamos na estação 10 minutos atrasados. Ou 50 minutos adiantados. Decidimos sentar em um pub ali ao lado, para tomar uma café, e o abismo entre Londres e countryside se fez presente: o atendente não sabia o que era um latte. Pedimos então coffee with milk e fomos servidos com um café preto instantâneo e uma jarrinha de leite frio. dessas que eles usam pra botar no chá. Tomei um pouco por educação, mas o meu lado cidade falou mais alto. Eu preciso de um latte.

O que me leva ao ritual do retorno: o latte no Leon assim que desembarcamos em London Bridge, antes de pegarmos o trem pra nossa casa. No Leon com atendimento péssimo mesmo, porque a essa altura do campeonato não sobra mais energia pra atravessar a rua.

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